Para falar da “Utopia da Mãe Terra” com um sentido correto precisamos resgatar o conceito de utopia e de Mãe Terra.
Utopia não deve ser entendida no sentido corriqueiro de algo fantasioso e irreal. Modernamente foi resgatado o sentido positivo de utopia. A utopia não se opõe à realidade, antes pertence à realidade, porque esta não é feita apenas por aquilo que é dado e se vê, mas por aquilo que é potencial, que ainda não se vê mas que pode um dia se transformar em dado real e visível. O ser humano é um projeto infinito. Dentro dele existe, escondido, um número ilimitado de potencialidades e virtualidades. Elas podem ser desentranhadas e podem ser transformadas em realidade. É aqui o nascedouro da utopia.
O filósofo alemão Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança. Por princípio-esperança, cujo conceito é assumido na encícica do Papa Francisco Fratelli tutti, é mais que a virtude da esperança. O princípio-esperança representa um motor interior que sempre está funcionando e alimentando o imaginário e o inesgotável potencial da existência humana e da história. O princípio-esperança é o nicho das utopias. Ele permite continuamente projetar novas visões, novos caminhos ainda não trilhados e sonhos viáveis. O sentido da utopia é sempre nos fazer andar, sempre superar dificuldades e melhorar a realidade. Como humanos, somos seres utópicos.
Temos ainda que resgatar a compreensão da Mãe Terra. A Terra existe já há 4,45 bilhões de anos, com a dimensão de 6.400 km de raio e com 40.000 km de circunferência.
A Terra conheceu 15 grandes extinções em massa de espécies de vida.Mas a vida sempre resistiu e nunca desapareceu. Refiro apenas a última ocorrida há 65 milhões de anos, causada pelo impacto de um asteróide de quase 10 km de volume, que caiu, provavelmente, em Yucatán no sudeste do México. Provocou incêndios infernais, gigantescos tsunamis, produziu muitos gases venenosos e um longo obscurecimento do sol. Plantas e os animais que viviam delas morreram. Os dinossauros que por 130 milhões de anos dominaram soberamente sobre a Terra desapareceram totalmente bem como 50% de todas as espécies de vida. Mas foram poupadas algumas espécies pequenas. Entre elas, uma do tamanho de um ratinho que foi nosso ancestral. Esse se desenvolveu ao longo do processo da evolução até chagar ao ponto do ser humano como o conhecemos hoje.
Em mais de 3 bilhões de anos de trabalho, a Terra produziu uma imensa biodiversidade de virus, bacterias, fungos, plantas e animais. Calcula-se que haja 5000 tipos de bacterias, 100.000 espécies de fungos, 300.000 espécies de arvores, 850.000 espécies de insetos. Ninguém sabe ao certo. Biólogos supõe a existência de ao todo cerca 30 milhões de espécies. Por que cito estes dados? Porque tudo isso está ameaçado e pode desaparecer. É a partir disso que vamos refletir.
Até o advento da ciência moderna, com os pais fundadores do paradigma científico vigente, Descartes, Galileo Galilei e principalmente Francis Bacon, a Terra era sentida e vivida como a Grande Mãe, a Magna Mater, Nana, Totanzin e Pacha Mama que tudo nos dá: uma realidade viva e irradiante que inspirava temor, respeito e veneração.
A partir da razão instrumental-analítica dos modernos tudo mudou. Ela passou a ser vista simplesmente, uma coisa extensa (res extensa) e sem propósito, entregue ao ser humano para fazer com ela o que quisesse. Esse pais fundadores, pelo fato de usarem somente a matemática e a física, não se deram conta de que a Terra não era só uma coisa extensa. Nela havia a natureza e a vida. Mas não lhe deram valor porque não cabia em seu conceito de ciência.
Esta atitude reducionista teve consequências boas e ruins. Boas:com suas invenções tornaram a vida mais fácil e grande mobilidade para as pessoas. Ruins: começou um processo de pilhagem dos bens e serviços da natureza, em função da acumulação e do bem estar de alguns, com a exclusão das grandes maiorias, entregues à pobreza e às doenças da pobreza. A exploração desmedida da natureza, sem cuidar das consequências negativas, nos levaram à crise atual. Inauguramos, como afirmam um grupo de cientistas, uma nova era geológica, o antropoceno. Isto significa: os danos à natureza e à Terra não vêm de fora, de algum metero rasante, mas da atividade humana demasiadamente destrutiva a ponto de o planeta perder seu equilíbrio dinâmico.
A seguir esta lógica de exploração, dizem os cientistas da Terra, podemos antes de atingir o ano 2050, assistir a devastação da biosfera com milhões de pessoas ameaçadas em suas vidas por fome, desnutrição, doenças e mortes. O nosso futuro estaria ameaçado.
Mas a partir dos anos de 1970 surgiu uma nova imagem da Terra que recupera a visão dos antigos: O cientista da NASA, James Lovelock e sua equipe, estudando as condições dos vários planetas da Terra, se deu conta de que a Terra é um super-Organismo vivo. Ele articula, com sutil calibragem,
todos os elementos fundametais para a vida, químicos, físicos e ecológicos de tal forma que ela surge como um entidade viva e geradora de vida. Chamou-a de Gaia, nome da divindade grega que representava a vida da Terra.
Assevera J. E. Lovelock :"Definimos a Terra como Gaia, porque se apresenta como uma entidade complexa que abrange a biosfera,a atmosfera,os oceanos e o solo; na sua totalidade, esses elementos constituem um sistema de realimentação que procura um meio físico e químico ótima para vida neste planeta”(Gaia, op.cit. 27).
A prova mais contundente de que a Terra é viva no-la deu o grande biólogo Edward Wilson. Num de seus livros afirma: "num só grama de terra, ou seja, menos de um punhado, vivem cerca de 10 bilhões de micro-organismos: bactérias, fungos e vírus, de 6 mil espécies diferentes (Wilson, Criação, p. 26).Se em tão pequena porção de terra há tamanha vida, imaginemos o planeta inteiro.
Os astronautas de suas naves espaciais testemunharam a mesma coisa: sentiam a Terra como algo vivo. Diziam que não existe separação entre Terra e Humanidade. Formam uma única unidade. Isaac Asimov, grande divulgador de conhecimentos científicos, por ocasião dos 25 anos do lançamento do Spunitik que inaugurou a era especial, afirmou numa entrevista ao New York Times em outubro de 1982:”o grande legado deste quarto de século é a percepção de que, na perspectiva das naves espaciais, Terra e Humanidade formam uma única entidade. Eles têm a mesma origem e o mesmo destino”. O ser humano, como disse o indígena argentino, grande poeta e cantor Athaualpa Yupanki: “o ser humano é Terra que caminha”.
O ser humano é a própria Terra que num momento avançado de sua evolução e complexidade começou a sentir, a pensar, a amar e a venerar. Eis que surgiu o homem e a mulher.Por isso que homo (homem e mulher) vem de húmus, terra boa e fértil. Em hebraico, Adam também significa filho e filha de Adamah, terra fecunda e arável.
Conclusão: hoje é convencimento de grande parte da comunidade científica de que a Terra é um planeta vivo, Gaia. Por que Mãe Terra? Pelo fato de que ela como uma Mãe tudo nos dá para vivermos, junto com os demais sere da natureza. Sem a Terra viva não haveria vida. Por esta razão ela é mãe.Mas como se chegou a formular a expressão: Mãe Terra?
Havia um projeto na ONU formulado pelos povos originários do mundo inteiro que postulavam chamar o “Dia da Terra”, no dia 22 de abril, de dia “Dia da Mãe Terra”. O projeto era sempre rejeitado, pois, se dizia, essa uma visão mítica, própria dos indígenas. Mas os eventos extremos que ocorreram nos últimos decêncios, com tufões, tornados, grandes enchentes e secas severas, ondas de calor de um lado e de grande frio do outro, eram sinais de que a Terra entrou em mutação. Ela é efetivamente viva e, por causa das intervenções destrutivas dos seres humanos, está perdendo seu equilíbrio.
Em função desta verificação, o tema da Mãe Terra foi incluido nos debates da ONU. No dia 22 de abril de 2008 depois de muitas discussões prévias houve o momento da votação do projeto Mãe Terra. Foi convocado para falar na grande Assembléia da ONU um indígena, o presidente da Bolívia, Evo Morales Ayma. Ele proferiu um dos discursos mais impressionantes que ouvi em minha vida. Começou
dizendo: “irmãos e irmãs, venho de joelhos como representante dos povos humildes da Terra para suplicar: não maltratem mais a nossa Grande Mãe Terra. O tipo de desenvolvimento que temos está sangrando seu corpo e diminuindo sua capacidade de continuar a dar tudo o que precisamos.O século XX foi o século dos direitos humanos individuais e sociais. O século XXI deverá ser o século dos direitos da natureza e da Mãe Terra. E então cita os principais direitos da Mãe Terra.
Em seguida encarregaram a mim para fundar cientificamente a denominação da Terra como Mãe Terra. Eu fiz o melhor que pude. Usei vários argumentos, mas único que convenceu a imensa platéia, foi quando eu disse: “se entendemos a Terra como solo, então podemos fazer o que queremos, cavar, cultivar, jogar agrotóxicos, comprar e vender. Com nossas mães jamais faríamos isso. Ao contrário, nós amamos e cuidamos de nossas mães. O que fazemos a nossas mães, devemos fazer com nosso planeta vivo que alimenta e dá tudo que precisamos para viver Devemos amá lo e cuidá-lo. Por isso a Terra deve ser chamada verdadeiramente de Mãe Terra. O aplauso foi geral. A votação unânime. A partir de agora, oficialmente, “o Dia da Terra” todo 22 de abril, será celebrado como o “Dia da Mãe Terra”. Embora tivesse havido unanimidade, o título Mãe Terra não se impôas nos discursos oficiais, nas empresas nem nos meios de comunicação. Convém ao sistema imperante depredador, continuar sua lógica de pilhagem da natureza e entender a Terra não como mãe mas simplesmente como solo a ser explorado. Não o poderiam fazer, se a chamassem de Mãe Terra. Não devemos permitir que a Terra-Mãe seja transformada em Terra selvagem a ser dominada e devastada.
A partir da declaração da ONU, a Mãe Terra é entendida sujeito de dignidade e de direitos. As constituições do Equador e da Bolívia são os primeiros países que em suas constituições introduziram a denominação Mãe Terra, na linguagem qúechua, Pachama Mama.
Qual é o nosso problema atual? São as várias ameaças que pesam sobre a Mãe Terra. Cito as principais: a ameaça de uma guerra nuclear, a mudança climática, a sobrecarga da Terra, a escassez de água potável, a crescente desigualdade social a nível mundial (en passant soube que na Itália, nos últimos 15 anos, a pobreza absoluta triplicou enquanto o número de bionários duplicou) , a invasão de vírus que podem ser letais, a crise geral do sistema de convivência que ainda se rege pelo conceito de soberania nacional, considerado obseto.
Não posso analisar todas estas ameaças. Atenho-me a três, à eventual guerra nuclear, a mudança climática e a sobrecarga da Terra. Estas três ameaças,se não mudarmos de rumo, podem significar o fim da espécie humana, o fim da vida no planeta. Não que o planeta Terra vá desaparecer. Ele pode continuar por milhões de anos circulando ao redor do Sol, mas sem a vida e sem nós.
Temos duas advertências graves: uma da Carta da Terra e outra do Papa Francisco. A Carta da Terra, um dos principais documentos, assumido pela ONU em 2003 visando um contrato social mundial no sentido de salvar a Terra viva e a nossa vida diz, logo em sua abertura:”Estamos num momento crítico da história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro...A escolha é essa: ou formamos um aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida”(Preâmbulo). O Papa Francisco,
reconhecendo que já estamos dentro da terceira guerra mundial aos pedaços, diz na Fratelli tutti:”estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(n.34). Devemos tomar a sério estas advertências, pois como nunca antes a humanidade enfrenta o risco de desaparecer por culpa nossa.
A primeira ameaça vem de uma eventual guerra nuclear entre as 10 potências militarista que juntas detém 15 mil ogivas nucleares.Se a disputa se acirrar entre os Estados Unidos, a Rússia e a China, para que haja um mundo multipolar e não mais unipolar, imposto pelos Estados Unidos, dizem muitos analistas da geopolítica, pode ocorrer uma escalada que culmine numa guerra nuclear mundial. Se esta ocorrer, o céu ficará branco, grande parte da vida e dos seres humanos não terão condições de sobreviver e desaparecerão.Não é improvável que isso ocorra, pois a Rússia, a propósito na guera contra a Ucrânia, já fez a ameaça de utilização de armas de destruição em massa. É o princípio da auto-destruição criado pela modernidade.
A segunda ameaça, a mais próxima e sensível, é o aquecimento global que produz mudanças climáticas, por um lado severas secas e por outro, terríveis inundações como tivemos no Sul do Brasil, afetando mais de dois milhões de pessoas e muitos mortos. Estas são produzidas pela atividade humana, especialmente pela forma como as grandes empresas e os complexos industriais tratam a Terra. O propósito desses é um crescimento ilimitado no pressposto de que os recursos da Terra também são ilimitados. A Laudato Sì do Papa Francisco diz enfaticamente que é mentira pressupor que um planeta limitado suporte um projeto de crescimento ilimitado (n.106).Nós não estamos indo ao encontro do aquecimento global e dos eventos extremos. Já estamos dentro.Os eventos
extremos estão ocorrendo no mundo inteiro. Os próprios climatólogos reconhecem: a ciência e a técnica chegaram atrasadas. Elas não podem reverter esta situação, apenas apenas advertir a chega de eventos extremos e minorar seus efeitos danosos.
Esse aquecimento é consequência do acúmulo de gazes de efeito estufa. Na atmosfera circulam, desde o processo de industrialização dois trilhões e seiscentos bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Só no ano de 2023 foram lançados na atmosfera cerca de quarenta bilhões de toneladas deste gás. Ele fica suspenso no ar por volta de 100 anos. Pelo fato de que não foram diminuidos as taxas de emisssão de gazes de efeito estufa, como fora acordado em 2015 em Paris, ao contrário aumentaram, teme-se que por entre 20025 a 2007 a temperatura global do planeta se estabilize em torno de 38- 40ºC, chegando em alguns lugares a 45ºC ou mais. Pessoas idosas e crianças e muitos organismos vivos não conseguirão adaptar-se e poderão morrer. Há muitos negacionistas do aquecimento global nos governos, nas empresas e nos cidadãos. O sistema atual capitalista poderá superexplorar a Terra até ela ficar inabitável para todos.
A terceira grave ameaça para a Mãe Terra é sua Sobrecarga (the Earth Overshoot). O Dia da Sobrecarga da Terra é a data do ano em que a necessidade da humanidade por recursos naturais supera a capacidade do planeta de produzir ou renovar esses recursos ao longo de 365 dias. Em 2023 ocorreu no dia 2 de agosto. O atual consumo, especialmente das populações mais ricas, está exigindo mais de um Terra e meia, estão tirando aquilo que a Terra não pode mais dar. Por ser um Super Organismo vivo, ela reage, enviando eventos extremos, mais aquecimento, mais vírus e transtornos gerais
nas relações sociais e psicológicas criando nas sociedades mais violência.
Acresce ainda a ruptura das fronteiras planetárias. Um grupo grande de cientistas a pedido da ONU definiram as nove fronteiras planetárias (planetary bounderies) que devem ser mantidas para garntir a estabilidade e a resiliência do planeta, como entre outras, a mudança climática e a disponibilidade de água doce e outras. Verificou-se que seis das nova fronteiras foram ultrapassadas.Como são sistemicamente articuladas, pode dar-se o efeito dominó: todas caiam. Então ocorrerá o colapso da civilização. A natureza, a sociedade e a vida humana correm grande risco de desaparecerem, numa espécie de Armagedom ecológico.
Aqui cabe a pergunta:temos chance de salvar a vida que está sobre a Mãe Terra? Ela poderá deixar de ser Mãe generosa e geradora da vida?
Cabe a nós a decisão: se quisermos seguir pelo caminho que estamos andando, sem mudar de rumo, provavelmente vamos engrossar o cortejo daqueles que rumam na direção de sua própria sepultura. Se quisermos sobreviver e ter ainda futuro temos que mudar. É o apelo veemente das duas encíclicas do Papa Francisco, Laudato Sì:como cuidar da Casa comum e da Fratelli tutti.
Confrontamo-os com dois paradigmas: o da modernidade,predominante que considera o ser humano não como parte da natureza, mas como seu dominus, seu senhor e dono.Usa o poder, o punho cerrado para dominar a tudo e a todos. Este paradigma, embora tenha trazido benefícios à humanidade,é o principal vetor da perigosa crise sistêmica atual.
O outro paradigma, aquele que nos poderá salvar, foi proposto pelo Papa Francisco na Fratelli tutti: é o paradigma do frater (do irmão e da irmã).Todos, os seres da natureza e nós mesmos, somos irmãos pois viemos igualmente do pó da Terra, como é dito no Gênsis 2,7. Ademais, todos os seres vivos, da célula mais originária, passando pelas grandes florestas, os animais e até nós, temos o mesmo código genético de base (os 20 aminoácidos e as 4 bases nitrogenadas). Somos objetivamente irmãos e irmãs, não só pela mística cósmica de São Francisco, mas por um dado científico.
O grande desafio é fazer a travessia do dominus, do senhor e dono, para o frater (o irmão e a irmã). Se não elaborarmos esta mudança, poderemos ir ao encontro do pior.Podemos também formular em outros termos: como passar da dominação para o cuidado? Da mão fechada para a dominação para a maõ aberta para a cooperação?
Antes de qualquer caminho novo a ser definido, temos que criar a consciência coletiva de que todos, ricos e pobres, do Norte e do Sul corremos o mesmo risco de vida. Se o problema é global, o normal seria criar um centro plural – com representantes de toda a humanidade – que pense soluções e as ponha em prática para toda a humanidade. Toda soberania é obsoleta. O vírus da Covid-19 não respeitou os limites das nações. Atacou a todos os países. Até agora não tiramos a lição. Devemos com urgência, se queremos ter êxito, criar uma Contituição da Terra, preocupação maior do eminente jurista italiano Luigi Ferrajolli.Ela criaria um consenso coletivo e conferiria um tratamento igualitário para todos. Sem esta governança global, dificilmente, enfrentaremos os desafios das mudanças ocorridas na Terra.
Quando não temos mais razões para crer, aí surge fé. Quando perdemos as razões para esperar aí surge a esperança. Bem observou o grande pensador francês Edgar Morin: A história várias vezes mostrou que o surgimento do inesperado e o aparecimento do improvável são plausíveis e podem mudar o rumo dos acontecimentos”. Cremos que o inesperado e o improvável podem acontecer. O ser humano, face aos graves riscos à sua sobrevivência, pode se conscientizar e traçar outro rumo. Pelo fato de ser um projeto infinito e habitado pelo princípio esperança,estão dentro dele virtualidades que, desentranhadas, poderão instaurar uma saída salvadora.
As grandes narrativas do passado não nos vão tirar da crise. Temos que auscultar a nossa própria natureza.Nela estão os princípios e valores que, ativados,mesmo sob grandes dificuldades, nos poderão salvar.
Antes de mais nada, temos que definir o ponto de partida. É o território, o bioregionalismo.É na região,assim como a natureza a desenhou que podemos construir sociedades sustentáveis e mais igualitárias e assim garantir um futuro para a Mãe Terra. Do local passamos para o global
Elenquemos os valores que estão em nós.
Como os bioantropólogos mostraram o amor pertence ao DNA humano. Amar significa estabelecer uma relação de comunhão,de reciprocidade,de entrega desinteressada e de sacríficio de si em função do outro. Amar a Terra e a natureza impica criar um laço afetivo com elas: sentir-se unidos a elas. Somos irmãos e irmãs de fato, entre nós e com todos os demais seres. Não basta sabe-lo, mas senti-lo e vivenciar o laço de comunhão.
Depois, devemos urgentemente viver a ética do cuidado tudo o que existe e vive. Cada ser, por minúsculo que seja, possui um valor em si mesmo e ocupa o seu lugar no processo de evolução. O cuidado, já foi dito e aprofundado pelos filósofos, é da essência de todo vivente especialmente do ser humano. O cuidado é uma relação amigável para com a natureza e a Terra. É preocupar-se com elas para que possam continuar a existir.Tudo o que amamos também cuidamos. Tudo o que cuidamos, também amamos. Um fator de nossa crise atual consite na falta total de cuidado e da justa medida em relação para com os limites suportáveis da natureza e da Terra como um todo.
Além disso, o estudo da evolução do ser humano (ele tem 7-8 milhões de anos e como sapiens/demens uns 200 mil anos) revelou que foi a solidariedade na busca e no consumo dos alimentos,juntos criando a comensalidade, que permitiu o salto da animalidade à humanidade. Somos seres naturalmente solidários, como se tem mostrado nas milhões de ajudas aos desabrigados e afetados pelas enchentes no Sul do país. Somos também seres de compaixão: podemos nos colocar no lugar do outro, chorar com ele, partilhar suas angústias e nunca deixá-lo só.
Ainda somos seres de cultura, da criação do belo, nas artes, na música, na pintura,na arquitetura. Podemos fazer aquilo que a natureza por si jamais faria, como uma canção de Verdi ou um pintura de Rafael.Como disse Dostoiéveski: “será a beleza que salvará o mundo”. Não a beleza como mera estética, mas a beleza como atitude de sentir-se solidário com as pessoas, como a um moribundo,segurando-lhe a mão e dizendo-lhe palavras de consolação:”se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que teu coração” (cf. 1João 3,20).
Somos, desde a mais alta ancestralidade,quando emergiu o cérebro límbico nos mamíferos, há 200 milhões de anos, seres de afeto, de sensibilidade e de empatia.No coração sensível reside o enternecimento, a ética, a espiritualidade e o mundo das excelências. Toda modernidade, em nome da pretensa objetividade da análise, recalcou o sentimento, os direitos do coração. O recalque da razão cordial ou sensível fez surgir um mundo técnico-científico que mostrou-se cruel e sem piedade. Temos que enriquecer a razão instrumental analítica necessária para atender as demandas das sociedades modernas com a razão sensível e cordial. Só assim enriquecemos nossa humanidade. O genocídio que está ocorrendo em Gaza mostra a falta de coração do governo israelense sob Netanyahu e dos países que o apoiaram como os da OTAN. Aqui só funciona a racionalidade irracional do extermínio de inocentes, por bombas inteligentes, sem sentir com o coração o sofrimento que causam.
Por fim é necessárioda religiosidade, ganha corpo no amor incondicional, no cuidado necessário à vida, na cooperação solidária e na esperança de uma vida que vai além desta vida.
Somos conscientes de que também acompanham-nos sombras que podem reverter o amor em indiferença, a solidariedade em insensibilidade,o cuidado em obsessão. Mas dispomos de uma força interior, não de negá-las mas de mantê-las sob o controle e fazê-las uma energia para a maturidade e o crescimento.
Só uma civilização que dá centralidade à vida seja da natureza e principalmente da Mãe Terra, fundada nos valores intrínsecos à natureza univeral dos seres humanos, poderá garantir que o planeta continue a ser Mãe Terra. Sem essa
conversão, do senhor e dono para o irmão e a irmã universais, não teremos futuro. Conheceremos tragédias de dimensões bíblicas e até apocalípticas.
Mas temos a convicção deque iremos atravessar “questa selva selvaggia e aspra e forte,” (Divina Comedia,Inferno, cantico 1) confiantes nas palavras da revelação contidas no livro da Sabedoria:”Deus, tu amas todos os seres e nada detestas, porque se odiasses alguma coisa não a terias criado...a todos poupas porque te pertencem ó soberno amante da vida”(Sabediria,11, 24-26).
Um Deus, apaixonado amante da vida, jamais deixaria perecer miseravelmente o ser humano, a vida da Mãe Terra, o único planeta vivo que temos, nossa Casa Comum, a natureza incluida.
*Leonardo Boff, uma LIVE dada em italiano o dia 11/6/2024 para uma Feira de Livros nas periferias de Roma
Geólogos e biólogos sustentam que devido à sistemática exploração dos recursos da Terra pelo modo de produção capitalista, que não respeita os limites de suportabilidade da Terra, fundamos uma nova era geológica –o antropoceno – na qual a grande ameaça à vida vem da atividade irresponsável especialmente dos poderosos que consomem egoisticamente os bens e serviços naturais, deixando insuficientes para os demais seres humanos.
Por causa do consumismo, estamos número da devastação ecológica é devastadora. A partir de 1900 desaparece uma espécie ao dia. No ano 2000 esta perda ocorria a cada hora e se calcula que no período de 1990-2030 terão sumido da face da Terra cerca de 38% das espécies existentes. Alguns afirmam que estaríamos dentro da sexta grande extinção em massa, a primeira provocada por uma espécie, no caso, a espécie humana (Oberhuber, 2004: 41; Novo, 2006: 54).